Nesta película, Rainer Werner Fassbinder faz uma Ode se é
possível, a falta de vigor, ao desespero e a morte. Tudo se relativiza , o eu,
a família, a pátria até mesmo o amor.
O filme tem uma linearidade que se põe no fluxo de mostrar o
personagem, sua vida, o local em que vive, superficialmente. Vemos de inicio um
pobre transexual, como tantos marginalizados. Contudo, ao tempo o diretor vai
adentrando no personagem, e adentrando na própria existência humana.
Vemos no inicio a história de Elvira/Erwin(Volker Spengler).
Seu passado comum de um Alemão do pós-guerra, que vai a escola, arruma uma
profissão, se apaixona, casa-se tem um filho . Contudo aqui a história parece
se desconstruir do comum, assim como um Kafka que escreve um ser preso em si em
um mundo medíocre e ilógico, Fassbinder debate-se o homem e suas construções
sexuais, políticas, materiais, filosóficas.
Após o diálogo que ocorre em um matadouro de um frigorifico,
onde é mostrado o abate de vacas, sendo degolado e o sangue jorrando pelo chão
sujo enquanto o personagem até então um simples travesti, sem força e potência
de existência aparente conta sua história. De que era um açougueiro, de que
amou e teve uma filha, mais que por um amor largou tudo e fez uma operação de
sexo, retirando o pênis.
O filme vai se encaminhando não obstante, do personagem e
seu inconsciente. A cena de uma televisão ligada passando o discurso de
Augustin Pinochet em 1978, uma cena de amor possivelmente francesa e uma cena
do próprio Erwin/Elvira no seu quarto com seu amante da uma mudança substancial.
Os personagens agora vão se encontrar em um quarto, luzes de vela, um homem em
um espelho fosco como uma maquina levanta supinos, uma outra persona começa a
falar sobre a vida, sobre a loucura, como não há saída, como estamos presos em
corpos que nada significam, diferentemente do pensamento de que o corpo é a
expressão da alma.
Em seguida o personagem vai a um convento conversar com uma
freira, ela conta o passado de Elvira/Erwin. Foi tido por um descuido da mãe, o
pai tão pouco queria saber do filho que foi jogado em um orfanato, lá ele
descobriu a mentira, os jogos entre os homens, as máscaras necessárias para a
sobrevivência. Poderia não apenas ser um convento de órfãos, mais uma escola
comum onde dezenas de milhares de crianças foram todos os dias se tornarem
cidadãos. Estas famílias podem ser também até mesmo as de “boa índole”, que
transformam o animar em homem através da cultura parafraseando Immanuel
Kant. Este diálogo e tenso, carregado,
aqui os personagens estão adentrando na superfície, na história conhecida,
naquilo que conversamos e contamos diariamente em nossas vidas para amigos ,
familiares. Há uma ruptura no ritmo, agora o filme começa a apresentar um
debate filosófico e político maior.
A peregrinação continua, Elvira/Erwin vai a um prédio
conversar com sujeito chamado Anton Saitz [Gottfried John]. Um grande
capitalista de Frankfurt. A conversa é sobre uma entrevista que ela deu em uma
revista contando seu passado, sobre seu amor por ele, como ele construiu seu
patrimônio de forma ilícita, etc. Entrando no prédio temos uma mudança, agora
como entrando em um campo de divagações em que cada corredor e sala representasse alguma coisa, medo –cena
do tiroteio - , o humor ou inveja ou egoísmo – mulher rindo na fresta da porta –
que faz lembrar muito o processo de Kafka .
Enquanto ela sobre este prédio, ela para em um andar
abandonado, numa saleta ela em um canto vê um homem entrar, preparar uma corda,
amarrar em uma viga, ela pergunta “você vai se suicidar?” Calmamente o
personagem explica que o mundo e uma formatação do destino em que pese a
miséria, a angustia e a morte, a vida é uma impotência, um julgamento final.
Suicidar-se é uma potência frente a vida, não porque foge das dores e
angustias, mais porque nega o prazer, nega como se deve dar a existência da
vida, logo supera o destino. Isso não significa a vontade de viver. É um trecho
realmente forte em que pede uma analise profunda do caminho da vida, o sentido
e a moral ocidental. Camus, Sartre,
Sabato, os fenomenologistas, todos tentaram compreender ou dar uma resposta a
esse “mito de sísifo” como escreve Camus, nada parece ser possível; Para
Bergman é o amor, que é uma construa, que é o que o personagem Erwin/Elvira
pede “só pedi um sorriso diário”. Tudo se desfalece, tudo é uma vontade
necessária.
O personagem continua subindo o edifício e finalmente chega ao
andar de Anton Saitz, o homem que ela busca para suas respostas e indagações. Nesta
saleta ela trava relações um segurança,e em várias salas, que diametralmente
dão uma sensação de vertigem, de aprofundamento na mente humana. Ela finalmente
está a frente com Saitz, o seu grande amor , indivíduo. Este relembra uma dança
infantil. Seu passado em comum, quando jovens trabalharam juntos, Elvira/Erwin
se apaixona por ele mais nunca disse diretamente. Eles vão para sua casa; Lá ele encontra sua
companheira prostituta dormindo na cama, Saitz começa a se relacionar
sexualmente com ela, Elvira que estava na cozinha preparando o café se sente atordoada,
sai à rua; Procura sua família, sua ex-mulher e filha, quer reconstruir um laço
familiar, um escape, a solidão é terrível, o engodo; Estas o renegam “já é
muito tarde”. Procura então um casal de amigos, um psicólogo que subindo uma
escada decanta a história contemporânea da Alemanha, os traumas da divisão, uma
metáfora onde todos estão errados, todos foram culpados pelo nazismo e pelo
comunismo, ninguém possui salvação, todos são homens afinal. Eles também após
se encontrarem com Elvira/Erwin na entrada de sua casa negam ajuda, “amanhã
preciso acordar cedo para dirigir”; Um toca disco soa as memórias de Elvira/Erwin, uma consulta com
o Psicólogo “A felicidade não existe, só a busca, e é isso que é excitante”.
“Se Fosse Adenauer libertaria os prisioneiros em Moscou”, sobre os prisioneiros
alemães presos pela URSS durante a guerra que foram trancafiados nos Gulags até
a morte de Stalin em 1956, poucos saíram com vida. Aquela ela admite sua
fragilidade, seu amor fátuo, de como viveu pelos outros e nunca por ela mesmo.
A potência que não significa viver, e sim morrer. É isso que ocorre no fim do
filme. Como se não houvesse volta, como desde o começo soubéssemos que é a
única escapatória, em um mundo opressivo e sujo como em um romance de Franz
Kafka. A morte é a liberação final e necessária. A dignidade humana.